Uma biografia em quadrinhos de Carolina de Jesus
Biografia em quadrinhos sobre escritora é premiada no Festival de Angoulême. Autores falam em levar símbolo de superação e resistência negra para outras linguagens.
Por Maria Teresa Cruz, da Ponte
Quando o ilustrador e roteirista João Pinheiro tomou contato com ‘Quarto de despejo: diário de uma favelada’, de Carolina Maria de Jesus, a cabeça dele virou. “Fiquei fascinado”, resume. Até aquele momento, João não conhecia a literatura marginal dessa mulher negra, que muito tempo passou desconhecida na academia e livrarias do país. “Eu estava assistindo aquele programa que passava na TV Cultura, o ‘Manos e Minas’, e aí uma rapper falava o nome de várias mulheres negras importantes e citava Carolina. Eu anotei o nome e fui procurar o livro depois, encontrei uma edição de bolso da década de 80 de Quarto de Despejo, comprei e li. Aí passei para Sirlene”, conta.
Essa foi a pequena semente de um desejo dos parceiros de trabalho e vida que floresceria até chegar no livro “Carolina”, publicado pela editora Veneta, uma biografia em formato de história em quadrinhos, ou melhor dizendo, uma “mini biografia, um recorte da vida” de Carolina, como faz questão de frisar a professora e pesquisadora Sirlene Barbosa. O livro venceu o prêmio especial do Festival de Quadrinhos de Angoulême, o mais importante do mundo do gênero, uma espécie de Cannes do HQ. A cerimônia de entrega acontece no dia 24 deste mês, na França.
Quando a dupla teve o click de fazer o livro, era final de 2013. Sirlene lembrou que em março do ano seguinte seria centenário da escritora. “Achei que íamos conseguir fazer um livro em três meses. Sonho meu”, diverte-se a professora em entrevista à Ponte. A aprovação no Proac-SP naquele mesmo ano deu fôlego, ânimo e, principalmente, verba para a produção. João contou que Carolina demorou um ano para ficar pronto, embora o sonho e a pesquisa date de antes disso. “Os projetos contemplados pelo programa têm 10 meses para serem feitos e apresentados. A gente pediu uma prorrogação, se não me engano, de dois meses. Ou seja, a gente ficou praticamente um ano para terminar o livro. Mas a pesquisa é anterior a isso, quase 10 anos antes”, explica.
Escritora favelada que viveu boa parte da vida na favela do Canindé, em São Paulo, teve seu primeiro livro publicado, basicamente um diário de memórias, pelo jornalista Audálio Dantas que viu nos escritos grande potencial. Mesmo com o sucesso do primeiro livro, passaria muitos anos invisibilizada nos estudos acadêmicos e pouco ou nada conhecida como referência na literatura brasileira. Para os autores há duas importantes motivações para entender esse silenciamento a respeito de Carolina Maria de Jesus: a ditadura e a branquitude dos ambientes acadêmicos de forma geral.
“Naquele contexto, depois do golpe de 64 [início do período da ditadura militar no Brasil que seguiria até os anos 80], uma escritora negra, favelada, que denunciava todas as mazelas da sociedade dentro de um contexto de um governo militar não pegava bem. Eles não iam querer mostrar uma realidade não condizente com o que eles pregavam, de que o país tinha igualdade racial, de que era um país que estava melhorando economicamente. Então ela era um incômodo”, explica João Pinheiro. “E a academia também que é branca e não considera a importância de Carolina”, afirma.
Sirlene concorda. “O Arroyo [Miguel Arroyo, pesquisador da área de educação e autor do livro ‘Currículo, território em disputa’] fala que currículo é espaço de luta. E nesse sentido também devemos compreender que foi a escola que inseriu a ideia de eugenia e embranquecer a raça brasileira. Quem é que seleciona o que será lido na Fuvest ano que vem? Quem define como e o que será ensinado e lido [nos mais diversos níveis da formação]? Ainda é a elite. Elite branca e escravocrata. A gente também precisa descolonizar os currículos”, provoca.
Sirlene Barbosa é professora do ensino público municipal, leciona em escolas da zona leste de São Paulo, onde inclusive nasceu, e exemplifica em experiências da sala de aula o que disse. “Eu comecei a observar a partir de um ato até ingênuo de uma estudante de uns 10 anos, hoje mais velha, de que faltava representatividade negra na escola. Por que eu falo negra e não indígena, LGBT, enfim, de vários outras minorias, que prefiro chamar de maioria silenciada? Vou te explicar: nesse dia eu fui ler um conto de fadas para as crianças e pensei: não vou ler Branca de Neve nem Cinderela. Isso eu já leio. Mas eu quero ler também livros cujas princesas sejam negras, latinas, indígenas, sejam meninas que se pareçam com as meninas para as quais eu dou aula. Eu escolhi uma que a princesa era negra e fechei a capa para eles não verem . Iniciei a leitura e tinha uma fala que dizia que a princesa era muito linda. Essa menina colocou a mão na boca com expressão de susto e disse: ‘você mentiu para a gente’. E eu disse: ‘mas por que?’ e ela: ‘porque você disse que ela era linda’. Eu não briguei, mas quis saber de onde ela tinha tirado essa ideia. E ela travou. O coleguinha do lado disse: ‘porque ela é negra'”, recordou Sirlene. “Eu não quero calar a voz do branco europeu. Mas eu quero inserir a voz do negro, do indígena, do latino, do africano, enfim, inserir essas vozes caladas”, afirmou.
Para João Pinheiro, a palavra que define bem a obra é superação. “A história dela é muito triste, muito pesada muito para baixo. Mas ao mesmo tempo ela tem muita força. Então, apesar de ter essa miséria, fome, a situação degradante que ela vivia, por outro lado ela tem muita força e persistência. E supera tudo, mesmo diante daquelas dificuldades, ela consegue seguir em frente, levantar todos os dias e não desistir. Isso é o principal”, disse.
Sirlene se orgulha da obra e espera que a história de Carolina chegue cada vez mais nas pessoas. “[Em 2013] Eu fiz uma pesquisa com 40 docentes, professores de salas de leitura da diretoria de Itaquera [região onde Sirlene também atua] e desses, 5 tinham ouvido falar dela, e uns dois apenas tinham iniciado a leitura de Quarto de Despejo”, recorda. “Então, se o livro servir para que algumas pessoas possam nos dizer: ‘eu não conhecia, eu passei a conhecer por causa do livro de vocês’, teria atingido meu objetivo. Além disso, seria muito importante que ele chegasse nas mãos de meninos e meninas da periferia para que eles saibam que é possível ser o que a gente quiser. Para que possam conhecer a história da mulher Carolina Maria de Jesus, porque ela foi mãe de três filhos, uma grande chefa de família, sustentou mesmo aquela molecada numa favela terrível, não tinha água encanada, era uma única torneira na favela inteira, não tinha energia elétrica. Ela trabalhava e ainda chegava em casa e tinha forças de escrever”, explicou.
Essa força que existe na persona de Carolina e que a dupla João e Sirlene apontou e fez questão de salientar no livro, na visão dos autores é o potencial transformador da literatura negra. Sirlene se recorda de uma história que aconteceu recentemente com a turma do EJA (Educação de Jovens e Adultos), onde também leciona. “Eu tinha uma aluna que apanhava do marido. Ela me contou que foram dois anos de muita violência. Pois bem, a gente teve a colação de grau dos estudantes e ela falou no meu ouvido que graças a minha aula sobre Carolina, ela conseguiu sair de casa. É muito forte, fico muito emocionada e grata”, resume.
Essa foi a pequena semente de um desejo dos parceiros de trabalho e vida que floresceria até chegar no livro “Carolina”, publicado pela editora Veneta, uma biografia em formato de história em quadrinhos, ou melhor dizendo, uma “mini biografia, um recorte da vida” de Carolina, como faz questão de frisar a professora e pesquisadora Sirlene Barbosa. O livro venceu o prêmio especial do Festival de Quadrinhos de Angoulême, o mais importante do mundo do gênero, uma espécie de Cannes do HQ. A cerimônia de entrega acontece no dia 24 deste mês, na França.
Quando a dupla teve o click de fazer o livro, era final de 2013. Sirlene lembrou que em março do ano seguinte seria centenário da escritora. “Achei que íamos conseguir fazer um livro em três meses. Sonho meu”, diverte-se a professora em entrevista à Ponte. A aprovação no Proac-SP naquele mesmo ano deu fôlego, ânimo e, principalmente, verba para a produção. João contou que Carolina demorou um ano para ficar pronto, embora o sonho e a pesquisa date de antes disso. “Os projetos contemplados pelo programa têm 10 meses para serem feitos e apresentados. A gente pediu uma prorrogação, se não me engano, de dois meses. Ou seja, a gente ficou praticamente um ano para terminar o livro. Mas a pesquisa é anterior a isso, quase 10 anos antes”, explica.
Escritora favelada que viveu boa parte da vida na favela do Canindé, em São Paulo, teve seu primeiro livro publicado, basicamente um diário de memórias, pelo jornalista Audálio Dantas que viu nos escritos grande potencial. Mesmo com o sucesso do primeiro livro, passaria muitos anos invisibilizada nos estudos acadêmicos e pouco ou nada conhecida como referência na literatura brasileira. Para os autores há duas importantes motivações para entender esse silenciamento a respeito de Carolina Maria de Jesus: a ditadura e a branquitude dos ambientes acadêmicos de forma geral.
“Naquele contexto, depois do golpe de 64 [início do período da ditadura militar no Brasil que seguiria até os anos 80], uma escritora negra, favelada, que denunciava todas as mazelas da sociedade dentro de um contexto de um governo militar não pegava bem. Eles não iam querer mostrar uma realidade não condizente com o que eles pregavam, de que o país tinha igualdade racial, de que era um país que estava melhorando economicamente. Então ela era um incômodo”, explica João Pinheiro. “E a academia também que é branca e não considera a importância de Carolina”, afirma.
Sirlene concorda. “O Arroyo [Miguel Arroyo, pesquisador da área de educação e autor do livro ‘Currículo, território em disputa’] fala que currículo é espaço de luta. E nesse sentido também devemos compreender que foi a escola que inseriu a ideia de eugenia e embranquecer a raça brasileira. Quem é que seleciona o que será lido na Fuvest ano que vem? Quem define como e o que será ensinado e lido [nos mais diversos níveis da formação]? Ainda é a elite. Elite branca e escravocrata. A gente também precisa descolonizar os currículos”, provoca.
Sirlene Barbosa é professora do ensino público municipal, leciona em escolas da zona leste de São Paulo, onde inclusive nasceu, e exemplifica em experiências da sala de aula o que disse. “Eu comecei a observar a partir de um ato até ingênuo de uma estudante de uns 10 anos, hoje mais velha, de que faltava representatividade negra na escola. Por que eu falo negra e não indígena, LGBT, enfim, de vários outras minorias, que prefiro chamar de maioria silenciada? Vou te explicar: nesse dia eu fui ler um conto de fadas para as crianças e pensei: não vou ler Branca de Neve nem Cinderela. Isso eu já leio. Mas eu quero ler também livros cujas princesas sejam negras, latinas, indígenas, sejam meninas que se pareçam com as meninas para as quais eu dou aula. Eu escolhi uma que a princesa era negra e fechei a capa para eles não verem . Iniciei a leitura e tinha uma fala que dizia que a princesa era muito linda. Essa menina colocou a mão na boca com expressão de susto e disse: ‘você mentiu para a gente’. E eu disse: ‘mas por que?’ e ela: ‘porque você disse que ela era linda’. Eu não briguei, mas quis saber de onde ela tinha tirado essa ideia. E ela travou. O coleguinha do lado disse: ‘porque ela é negra'”, recordou Sirlene. “Eu não quero calar a voz do branco europeu. Mas eu quero inserir a voz do negro, do indígena, do latino, do africano, enfim, inserir essas vozes caladas”, afirmou.
Para João Pinheiro, a palavra que define bem a obra é superação. “A história dela é muito triste, muito pesada muito para baixo. Mas ao mesmo tempo ela tem muita força. Então, apesar de ter essa miséria, fome, a situação degradante que ela vivia, por outro lado ela tem muita força e persistência. E supera tudo, mesmo diante daquelas dificuldades, ela consegue seguir em frente, levantar todos os dias e não desistir. Isso é o principal”, disse.
Sirlene se orgulha da obra e espera que a história de Carolina chegue cada vez mais nas pessoas. “[Em 2013] Eu fiz uma pesquisa com 40 docentes, professores de salas de leitura da diretoria de Itaquera [região onde Sirlene também atua] e desses, 5 tinham ouvido falar dela, e uns dois apenas tinham iniciado a leitura de Quarto de Despejo”, recorda. “Então, se o livro servir para que algumas pessoas possam nos dizer: ‘eu não conhecia, eu passei a conhecer por causa do livro de vocês’, teria atingido meu objetivo. Além disso, seria muito importante que ele chegasse nas mãos de meninos e meninas da periferia para que eles saibam que é possível ser o que a gente quiser. Para que possam conhecer a história da mulher Carolina Maria de Jesus, porque ela foi mãe de três filhos, uma grande chefa de família, sustentou mesmo aquela molecada numa favela terrível, não tinha água encanada, era uma única torneira na favela inteira, não tinha energia elétrica. Ela trabalhava e ainda chegava em casa e tinha forças de escrever”, explicou.
Essa força que existe na persona de Carolina e que a dupla João e Sirlene apontou e fez questão de salientar no livro, na visão dos autores é o potencial transformador da literatura negra. Sirlene se recorda de uma história que aconteceu recentemente com a turma do EJA (Educação de Jovens e Adultos), onde também leciona. “Eu tinha uma aluna que apanhava do marido. Ela me contou que foram dois anos de muita violência. Pois bem, a gente teve a colação de grau dos estudantes e ela falou no meu ouvido que graças a minha aula sobre Carolina, ela conseguiu sair de casa. É muito forte, fico muito emocionada e grata”, resume.
Fonte: Portal Vermelho A Esquerda Bem Informada
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