Há 36 anos, movimento comunitário dava início à história da Conam
Houve época em que as praças eram o principal símbolo das lutas do povo brasileiro. “A praça! A praça é do povo/ Como o céu é do condor”, escreveu Castro Alves, em 1864, no poema “O Povo ao Poder”.
Por André Cintra*
Se o acesso às praças fosse bloqueado, sobressaíam as palavras de ordem, os hinos e até as pichações em muros. “Estas poesias (...) são comício e manifesto. São umas das mil formas de se chegar ao povo quando negam ao povo a praça pública”, explica Mário Lago, na introdução de “O Povo Escreve a História nas Paredes”, de 1948.
Das “mil formas de se chegar ao povo”, poucas se mostraram mais eficientes e vitoriosas do que a formação de entidades nacionais representativas. Foi assim no movimento estudantil, com a UNE e a Ubes. Foi assim também na centenária história do sindicalismo, com suas associações, federações, confederações e centrais sindicais. Foi assim – e ainda mais – nas lutas políticas da República, a partir do nascimento e na consolidação, Brasil afora, de partidos democráticos, patrióticos e progressistas.
Com o movimento comunitário – que emergiu, de forma muito limitada e incipiente, na virada da década de 1920 para os anos 30 –, não foi diferente. Houve lutas memoráveis, sim, até os últimos anos da ditadura militar (1964-1985). O movimento encarou o arbítrio, levantou bandeiras históricas, formou lideranças de massas e viu a voz dos bairros chegar às praças centrais.
Faltava, no entanto, uma representação nacional do movimento – uma entidade máxima –, capaz de unificar as lutas comunitárias e populares, acumular forças e consolidar as conquistas. Partindo das demandas das associações de moradores e das sociedades amigos de bairro, essa entidade teria mais peso político para legitimar e fortalecer as reivindicações populares. Foi sob esse contexto que, há 36 anos, nasceu a Conam.
Do Movimento contra a Carestia à Anampos
Duramente atingido após o golpe de 1964, o movimento voltou a se fortalecer nos anos 70. Com o reforço de lideranças sindicais e partidárias – cada vez mais perseguidas pelo regime –, a luta popular se tornou mais politizada e abrangente. Seu marco principal foi o Movimento contra a Carestia, que combateu o elevado custo de vida. Numa mesma frente de lutas, uniram-se várias forças sociais, como partidos políticos (inclusive os clandestinos) e setores da Igreja Católica, através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
O Movimento contra a Carestia culminou em vários feitos, como o abaixo-assinado com 1,25 milhão de adesões pelo congelamento dos preços dos gêneros de primeira necessidade; a Assembleia Popular com 7 mil pessoas; a Passeata das Panelas Vazias; a eleição de parlamentares egressos da luta comunitária, como Aurélio Peres e Irma Passoni; a fundação e a reorganização de milhares de associações de moradores e sociedade amigos de bairro, bem como as primeiras entidades federativas municipais e estaduais. Tudo às voltas com a abertura “lenta, gradual e segura”.
A primeira tentativa de construir uma entidade nacional de moradores parecia contemplada na fundação da Anampos (Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindicais), criada em fevereiro de 1980, na cidade mineira de João Monlevade. Segundo Frei Betto, um dos idealizadores da Anampos, o objetivo era “congregar, em caráter suprapartidário e supraconfessional, militantes e entidades identificados com as aspirações libertárias expressas na prática pastoral das CEBs e na Carta de Princípios do PT”.
O documento final do “Encontro de João Monlevade” foi assinado por “dirigentes sindicais, líderes operários e militantes do movimento popular”, a exemplo de Luiz Inácio Lula da Silva e João Pedro Stedile. O texto enfatizava a “unidade de ação”, para “articular o movimento popular engajado na busca libertação integral do povo brasileiro”. Era fato que, até 1980, a luta contra a ditadura unia as entidades num mesmo campo. Da mesma forma, a oposição ao regime se concentrava num único partido, o MDB. Praticamente não havia correlação de forças favorável a mais alternativas.
Com a decadência do governo dos generais-presidentes e a volta do pluripartidarismo, as diferenças entre as forças progressistas vieram à tona. Em poucos meses, o MDB se dividiu em quatro partidos – PMDB, PTB, PDT e PT. As legendas clandestinas, beneficiadas com a Anistia de 1979, também começaram a se reorganizar. Foi o caso do PCdoB e do PCB.
Ao realizar o “Encontro de Vitória”, em junho de 1981, a Anampos ainda procurou afirmar-se como uma articulação “apartidária”, em busca de “pontos comuns de lutas”, respeitando a “autonomia do movimento popular e sindical frente aos partidos políticos”. Mas as divergências naturais entre as várias tendências no interior e fora da Anampos inviabilizaram a unidade.
A Comissão Pró-Conam
No segundo semestre de 1981, as iniciativas em defesa de uma entidade nacional movimento comunitário se renovaram. Associações de moradores realizaram encontros regionais em todo o Brasil e convocaram seu congresso nacional de fundação para o ano seguinte. Os rumos da entidade, autônoma e suprapartidária, foram especialmente discutidos no 2º Encontro Nacional de Entidades de Moradores de Bairros, Vilas e Favelas (no Rio de Janeiro, em 29 e 30 de agosto) e no 3º Encontro Nacional das Associações de Moradores (em São Paulo, no dia 26 de setembro).
Um dos documentos pró-Conam deixava claro: “Para que o Congresso (de fundação) se transforme numa grande vitória do povo, ele deverá permitir discussões profundas que formarão as bases de suas deliberações e resoluções”. A pauta do encontro não se resumia à atuação típica do movimento. “A luta é também por questões políticas, como a queda do regime militar, pela Constituinte livre e soberana, contra o desemprego e a carestia, e também contra estes últimos pacotões”, resumiu o gaúcho Paulo Della Zen à “Tribuna da Luta Operária”.
O 1º Congresso Nacional das Associações de Moradores (Conam) foi marcado, enfim, para 16 e 17 de janeiro de 1982, no Ginásio do Pacaembu, em São Paulo (SP). As lideranças à frente do movimento constituíram uma Comissão Pró-Conam, sob a presidência de Almir de Barros.
No dia 14 de janeiro, às vésperas do encontro, a comissão promoveu um ato para divulgar documento com os objetivos do movimento. A prioridade era criar uma confederação nacional “mais ampla”. Segundo a comissão, “os problemas de saúde, saneamento, educação, transporte, moradia, lazer, segurança e outros tornaram-se tarefas que exigem descentralização e a participação de todos para encaminhar suas soluções”.
O documento fazia também uma firme defesa das entidades de base. “As associações de moradores de bairros, vilas e favelas não são organismos artificiais. Surgiram ao longo das últimas décadas de forma espontânea e autônoma, como expressão legítima dos interesses da população na luta por seu bem-estar, reivindicando melhores condições de infraestrutura – água, luz, esgoto, asfalto, segurança, etc.”.
Prometia-se, ainda, um posicionamento político aberto pelo “cessamento do arbítrio” e pela “participação permanente e organização de todo o povo no processo de decisões”. De acordo com a comissão pró-Conam, as eleições diretas eram o “caminho para que as verdadeiras causas do desequilíbrio de renda – a dependência energética e o endividamento generalizado – desapareçam”.
Um atribulado congresso
O início do Congresso de Fundação da Conam estava previsto para as 9 horas de 16 de janeiro, um sábado. Desde sexta-feira, as delegações de fora de São Paulo já estavam acomodadas em dependências cedidas pelos governos estadual e municipal, como o próprio Pacaembu, o Ginásio do Ibirapuera e em escolas públicas.
O credenciamento começou às 7h30 de sábado. Se o movimento comunitário dispusesse de estrutura material e financeira, o encontro superlotaria o Ginásio do Pacaembu. Havia 15 mil delegados credenciados, sendo 8 mil de São Paulo e 7 mil dos outros 22 estados, do Distrito Federal e dos então territórios de Roraima e do Amapá. No final, 5 mil pessoas compareceram ao primeiro dia do congresso.
Mesmo com a considerável “quebra” na mobilização, o primeiro dia do Congresso foi atribulado. Sem experiência para um encontro de tamanha envergadura, a Comissão Pró-Conam se perdeu logo no credenciamento dos delegados. A abertura do congresso foi adiada para o início da tarde. Mesmo assim, mais de 2 mil participantes ainda estavam sem inscrição. Os problemas, sobretudo de hospedagem e alimentação, prosseguiram até o fim da atividade.
Nada, porém, ofuscou o ânimo das lideranças presentes. O ginásio foi tomado por dezenas de faixas e cartazes que saudavam o congresso. Enquanto a programação não tinha início, delegados se revezavam em batucadas e cantorias. Quando Almir de Barros abriu o Congresso, logo depois do horário de almoço, a plenária contava com representações de 18 estados.
No domingo, dia 17, o congresso chegou à sua fase mais importante: a criação da Conam entrou em discussão pela manhã. Após uma série de discursos inflamados – a maioria em defesa da nova entidade –, a mesa anunciou que 2.717 delegados estavam aptos a participar da eleição. Por 1.172 votos a 618, a plenária aprovou a fundação e o estatuto da Confederação Nacional das Associações de Moradores. Houve ainda 11 votos nulos e dois em branco, além de 914 abstenções.
O encontro se encerrou às 17h30, com a posse da primeira direção da história da Conam, composta por 29 membros e eleita para um mandato de dois anos. Uma vez fundada, a Conam passou a representar as mais de 8 mil associações de bairro que o país tinha – e que abrangiam 25 milhões de pessoas. A maioria desses brasileiros (cerca de 95%) ganhava até três salários mínimos. Na época, o déficit habitacional no país era da ordem de 8,5 milhões de moradias. Para piorar, em 11 estados não havia nem sequer federações criadas pelo movimento comunitário.
No horário de encerramento do encontro, o estádio do Pacaembu recebia o jogo Santos x Vasco da Gama. Apesar da dispersão dos delegados e da partida, a diretoria se reuniu para definir sua composição. Como já era esperado, Almir de Barros se tornou o primeiro presidente da entidade. Militante do PMDB, Almir era membro do Conselho Coordenador das Sociedades de Amigos de Bairro do Estado de São Paulo.
Irineu Guimarães, da Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro, foi designado vice-presidente. Já Washington Aires, da Federação das Associações de Moradores do Rio Grande do Sul, assumiu a Tesouraria. Cada região brasileira foi representada na diretoria por um vice-presidente. Entre os dirigentes eleitos, havia lideranças que despontam hoje no Congresso Nacional, como o senador Inácio Arruda e o deputado federal Walter Feldman.
A Conam hoje
Aos 36 anos, a entidade máxima do movimento comunitário brasileiro está presente em todos os estados do País e no Distrito Federal, exercendo a representação de 23 federações estaduais, 550 uniões municipais e mais de 20 mil associações de moradores. Atua nas conferências da Saúde, Cidades, Políticas Públicas para as Mulheres, Esportes, Cultura, Segurança Alimentar e Meio Ambiente; nos Fórum Nacional de Reforma Urbana, no Fórum Brasileiro de Orçamento e na Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental.
Fundadora da Frente Brasil Popular – ao lado de partidos e outras entidades do movimento social brasileiro –, a Conam ainda é membro da Aliança Internacional de Habitantes e da Frente Continental de Organizações Comunitárias. Sua direção atual, sob a presidência do gaúcho Getúlio Vargas Júnior, é suprapartidária, com membros filiados a legendas como PCdoB, PT, PDT, PSB, PSDB e independentes.
A existência da Conam é garantia de permanente resistência popular à opressão. Sua história faz justiça aos versos de Mário Lago: “O povo não morre, é eterno./ Passam os traidores do povo,/ O povo não passa não (...)/ O povo sabe os caminhos/ pra enfrentar a reação”.
* André Cintra, jornalista, é secretário de Comunicação do PCdoB de São Paulo e assessor da FITMETAL (Federação Interestadual de Metalúrgicos e Metalúrgicas do Brasil). Este texto é baseado em um artigo de sua autoria publicado em 2012 na revista “Habitar”, da Conam.
Fonte: Portal Vermelho A Esquerda Bem Informada
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