domingo, 20 de junho de 2010

Saramago, a história de Portugal pelo olhar do oprimido

Cultura

19 de Junho de 2010 - 21h40

“As palavras não dizem tudo quanto é preciso” – escreveu Saramago. No entanto, é a partir elas, quando artisticamente trabalhadas, que temos a literatura.

Por Beatriz Helena*
José Saramago, que “retirou-se” na manhã de ontem, nos deixou vasta e variada obra literária, iniciada pela poesia ( Os Poemas Possíveis, 1966; Provavelmente Alegria, 1970 ), seguindo pela crônica (Deste mundo e do outro, 1971; A Bagagem do Viajante, 1973) e o teatro (A Noite, 1979; Que farei com este livro? 1980; A segunda vida de Francisco de Assis, 1987; In Nomine Dei, 1993).

Com a publicação de Levantado do Chão (1980), alcançou notoriedade, dando início a uma série de romances consagrados, a saber: Memorial do Convento (1982), considerada a sua obra prima até o momento; O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), onde temos o heterônimo pessoano hedonista instalado em Lisboa durante a ditadura de Salazar; Jangada de Pedra (1986), em que a Península Ibérica separa-se da Europa; História do Cerco de Lisboa (1989); O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991); Ensaio sobre a cegueira (1995), que comentaremos a seguir; Todos os nomes (1997); As intermitências da Morte (2006) e Caim (2009), entre outros.

Dono de um estilo único, caracterizado pela criação de inusitadas metáforas, freqüência do tom irônico, além de apelo aos sentidos, magistralmente conduz o leitor para dentro de cenas das mais inesperadas, oscilando entre o cômico e o trágico, geralmente nos colocando diante do que de mais humano possa haver em nós. Em algumas obras, como O Memorial do convento e O Ano da Morte de Ricardo Reis, trama com a história de Portugal, repensando-a criticamente e confrontando-nos com reflexões inevitáveis. Em outras, como O Ensaio sobre a cegueira, trama com a própria humanidade, descendo ao que de pior as pessoas podem guardar, para depois revelar suas mais dignas e sublimes qualidades.

Concentremos-nos nesta obra. Temos uma cidade sem elementos que possamos identificar, tais quais nome e marcas características (Torre Eifel, Praia de Copacabana ou Coliseum), povoada por personagens que somente estão identificadas através de uma sua atribuição ou condição, ou seja: o primeiro cego, o médico, a mulher do médico, o ladrão (que roubou o carro do primeiro cego), a rapariga de óculos escuros, o velho da venda preta. Sem mais nem porque, inicia-se um surto de cegueira.

O fluxo de consciência permeia seus romances, através de diálogos visualmente misturados, mas que o leitor será perfeitamente capaz de demarcar. Além da escrita particular, ler a obra saramaguiana incomoda pelo que ele diz e o final não é necessariamente o objetivo a ser alcançado, visto que poderemos encontrar nossa própria revelação em mais de um lugar na obra.

À literatura, conquanto arte, não podem ser atribuídos usos e funções, mas a grande literatura dialoga com questões presentes em nossas vidas através dos tempos. Na obra de Saramago temos a história de Portugal, do ponto de vista do povo oprimido, reflexões profundas acerca de quem somos, em geral e em particular e a beleza de frases simples, como em

“Tinha estado com os olhos abertos sempre, como se por eles é que a visão tivesse de entrar, e não renascer de dentro, de repente disse, Parece que estou a ver.”

*Beatriz Helena é pós graduanda em Literatura Portuguesa na Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ.

http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=11&id_noticia=131798

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