Brasil: de referência a patinho feio das políticas ambientais
Plano Nacional de Regularização Fundiária, sancionado por Temer, permite a legalização ampla de áreas públicas invadidas na Amazônia e retira exigências ambientais para a regularização fundiária
Por Maurício Thuswohl
Se antes pareciam ofuscados pela repercussão internacional das crises política e econômica que atingem o Brasil desde que teve início o processo de afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da República, os retrocessos ambientais na Amazônia já não são mais segredo. Isso ficou comprovado pela saia justa em que se viu o presidente Michel Temer nas suas passagens pela Noruega, onde fez visita oficial no final de junho, e pela Alemanha, onde participou na semana passada da reunião de cúpula do G20.
Muito comentado pelas delegações estrangeiras durante os dois encontros internacionais, o recuo do governo brasileiro na proteção do maior bioma do país tem sido demonstrado aos olhos do mundo com fatos irrefutáveis, como o recrudescimento do desmatamento e o avanço de propostas que atendem a interesses ruralistas e ameaçam a floresta.
Desde que se tornou presidente, Temer surge como grande fiador de um retrocesso planejado nas políticas para a Amazônia que passa pela aprovação de projetos que, entre outras coisas, reduzem áreas protegidas e Terras Indígenas, liberam atividades como pecuária e grilagem, enfraquecem o processo de licenciamento ambiental de construções e empreendimentos e legalizam terras públicas invadidas.
Por mais que tenha tentado em Oslo e em Hamburgo manter um discurso ambiental otimista, Temer foi acossado na Europa pelos números do desmatamento que voltaram a crescer de forma alarmante nos últimos dois anos. Os mais recentes dados divulgados pelo Projeto de Monitoramento do Desflorestamento na Amazônia (Prodes), que são coletados por satélite pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e tratados como oficiais pelo governo, revelam que entre agosto de 2015 e julho de 2016 foram derrubados 7.989 quilômetros quadrados de floresta amazônica, o que representa aumento de 30% em relação ao período anterior e é equivalente à área metropolitana de São Paulo.
Como primeira consequência, a Noruega, maior financiador individual do Fundo Amazônia com impressionantes R$ 2,8 bilhões já doados desde 2008 a programas de prevenção e monitoramento do desmatamento, anunciou um corte de 50% no montante de cerca de R$ 400 milhões que doaria ao Brasil em 2017. Para constrangimento de Temer, a primeira-ministra norueguesa, Erna Solberg, cobrou o governo brasileiro publicamente durante uma coletiva de imprensa. “O aumento do desmatamento nos preocupa a todos”, disse.
Em carta aberta enviada ao ministro brasileiro do Meio Ambiente, Sarney Filho, que também fez parte da visita oficial à Noruega, o ministro norueguês da mesma pasta, Vidar Helgesen, creditou o corte no financiamento do Fundo Amazônia ao fato de “o crescimento do desmatamento no Brasil voltar a apresentar uma tendência preocupante” após o país ter “realizado um feito impressionante ao reduzir o desmatamento da Amazônia entre 2005 e 2014”. Por sua vez, em seu discurso para autoridades e empresários noruegueses, Sarney afirmou que o aumento do desmatamento no Brasil se deve a cortes de recursos realizados pelo governo anterior.
Representante da sociedade civil brasileira em diversas reuniões multilaterais nos últimos anos, a antropóloga Iara Pietricovski, que é diretora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e integra a diretoria executiva da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong), ressalta que “a leitura de que a Noruega está castigando o Brasil é equivocada”.
Ela lembra que o corte anunciado no Fundo Amazônia já estava previsto no contrato original: “Primeiro houve uma queda muito grande do desmatamento e a Noruega aportou bastante mais dinheiro, pois isso estava atrelado aos resultados apresentados pelo Brasil. Com a volta da destruição da floresta, ela cortou agora porque no contrato original isso também já estava pré-estabelecido. Há um aumento no desmatamento e, em função disso, automaticamente vai vir menos dinheiro”, diz.
Para Adriana Ramos, coordenadora de Política e Direito do Instituto Socioambiental (ISA), o Brasil passou por um “vexame internacional” e posou como vilão, uma vez que o corte no financiamento norueguês foi encarado como uma sanção necessária pela comunidade internacional: “Na realidade, não houve uma decisão unilateral da Noruega. A redução de recursos ocorreu porque o próprio governo brasileiro não fez seu dever de casa para manter o ritmo de queda do desmatamento".
Entre 2003 e 2012, a taxa dos desmates na Amazônia caiu de 27,7 mil quilômetros quadrados para 4.500. Entre 2013 e 2016, saltou para 8.000 quilômetros quadrados”, diz.
O deputado estadual do Rio de Janeiro e ambientalista Carlos Minc (sem partido) afirma que “o governo Temer representa um sério retrocesso no campo social, na esfera dos direitos e, muito acentuadamente, na área ambiental”. Minc, que foi ministro do Meio Ambiente no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, lamenta o abandono das políticas de proteção à Amazônia: “De abril de 2008 a abril de 2010, reduzimos em 50% o desmatamento da Amazônia: de 13 mil quilômetros quadrados para 6.500. Criamos ou ampliamos parques e reservas extrativistas em 6,2 milhões de hectares. Apoiamos a Funai e o Ministério da Justiça na demarcação ou homologação de 7 milhões de hectares de Terras Indígenas”.
O ex-ministro lembra que o Brasil foi o primeiro país em desenvolvimento a ter metas de redução de emissões de carbono, por lei: “Além disso, criamos o Fundo Clima e o Fundo Amazônia - este com a doação que obtivemos da Noruega - precisamente pelos avanços que mencionei. Infelizmente, todos estes sinais, indicadores e medidas se inverteram, mudaram radicalmente de direção”, diz.
Papel rebaixado
Durante a reunião do G20, o governo brasileiro foi avisado pelo diretor de Políticas Climáticas do governo da Alemanha, segunda maior doadora do Fundo Amazônia com R$ 60 milhões, de que o país deverá também anunciar em breve a redução de suas contribuições: “Como a taxa de desmatamento cresceu nos últimos dois anos, o Brasil receberá menos dinheiro”, disse Karsten Sach.
Este tema acabou desprezado durante o G20 diante do estardalhaço provocado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que confirmou oficialmente a saída de seu país do Acordo de Paris contra o aquecimento global. Mas, Temer e Sarney ouviram diversas cobranças sobre questões como o Plano Decenal de Energia, que na contramão do mundo prevê 70% de combustíveis fósseis, a diminuição de áreas protegidas e o afrouxamento do licenciamento ambiental: “O governo também foi cobrado pelo seu alinhamento aos interesses ruralistas”, diz documento de análise divulgado pelo Observatório do Clima.
No cenário global, a deterioração da imagem do Brasil como ator de primeira linha já é evidente: “Em espaços onde conhecem o mundo da política, como, por exemplo, as reuniões onde eu circulo nas Nações Unidas, no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional, as pessoas estão muito impactadas negativamente com o que está acontecendo no Brasil e existe, sim, uma reserva muito grande em relação à capacidade de o país enfrentar os desafios que estão colocados. Há uma visão muito negativa do Brasil hoje no mundo da politica internacional e nos espaços multilaterais, em especial os da sociedade civil organizada”, diz Iara Pietricovski.
Para a representante internacional da sociedade civil brasileira, diminuiu a interlocução multilateral com o governo. “Há o entendimento majoritário de que houve um golpe de Estado no Brasil e que os indivíduos do atual governo estão ligados a muita corrupção e a uma agenda neoliberal que vai, inclusive, de encontro ao que acontece no mundo, já que nem as próprias análises do Banco Mundial prescrevem mais essas medidas de austeridade como solução de crises econômicas como a que o Brasil está passando. Ninguém esperava que as oligarquias brasileiras fossem tão tacanhas.”
Grilagem premiada
No cenário interno, este avanço sobre as políticas ambientais não cessa, com especial efeito nefasto sobre a floresta. No episódio mais recente, Temer assinou em 10 de julho a lei 13.465, que instituiu o Plano Nacional de Regularização Fundiária e é derivada da criticada Medida Provisória 759, batizada pelos ambientalistas como MP da Grilagem por permitir a legalização massiva de áreas públicas invadidas na Amazônia e retirar exigências ambientais para a regularização fundiária. Negociada ponto a ponto com os ruralistas, a nova lei aumenta de 1,5 mil m² para 2,5 mil m² a área que pode ser desmatada, estenda a anistia aos proprietários que desmataram suas terras até 2011 (antes ia até 2004) e determina que terras públicas já ocupadas possam ser compradas por 50% do valor mínimo da tabela do Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra).
A MP já havia sido aprovada em caráter definitivo pelo Senado e transformada no Projeto de Lei de Conversão (PLC) 12/2017 em sessão realizada no último dia de maio, mas, após denúncia apresentada por 11 parlamentares do PT que acusaram o relator Romero Jucá (PMDB-RR) de ter feito alterações no texto original da medida e alterado o mérito da votação, o ministro Luiz Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou em decisão liminar que ela voltasse à Câmara dos Deputados, onde foi novamente aprovada em 27 de junho.
Em um contexto onde o governo busca consolidar apoios no Congresso para barrar a denúncia de corrupção e obstrução da Justiça apresentadas contra Temer pela Procuradoria-Geral da República, também chama a atenção o acordo feito com a bancada ruralista em relação às propostas que reduzem consideravelmente áreas protegidas na Amazônia. Na véspera do embarque para a Noruega, o presidente anunciou o veto da Medida Provisória 756, que reduzia 600 mil hectares da Floresta Nacional do Jamanxim, no sul do Pará.
A decisão, no entanto, não foi comemorada pelos ambientalistas, uma vez que é o primeiro movimento de um acordo segundo o qual Temer se comprometeu a enviar ainda no mês de julho ao Congresso um Projeto de Lei que retomará o conteúdo original da MP 756, mas que determina a transformação de 486 mil hectares da Flona Jamanxim em Área de Proteção Ambiental (APA), categoria que permite atividades como pecuária, mineração e compra e venda de terrenos, entre outras. Detalhe: segundo o próprio governo, cerca de 70% do desmatamento realizado em UCs federais no ano passado ocorreu em Jamanxim.
Em entrevista coletiva concedida ao lado do deputado ruralista Darcísio Perondi (PMDB-RS), o ministro Sarney Filho afirmou que o envio do PL ao Congresso ainda depende de um parecer técnico favorável por parte do Instituto Chico Mendes (ICMBio), órgão subordinado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) e responsável pela gestão das Unidades de Conservação federais. No entanto, em vídeo gravado ao lado do senador ruralista Flexa Ribeiro (PSDB-PA) e compartilhado nas redes sociais, Sarney declara apoio ao envio do PL e afirma que “o projeto trará mais segurança jurídica” ao processo de redução das UCs: “O projeto será enviado em regime de urgência constitucional”, disse.
Outra questão que tem despertado o desconforto internacional é o desvirtuamento dos objetivos iniciais do Cadastro Ambiental Rural (CAR), que deveria ser um instrumento de regularização fundiária e dissuasão ao desmatamento, mas, na prática, promete trazer ainda mais confusão à aplicação das políticas ambientais na Amazônia. Isso porque os fazendeiros declararam ao Incra como sendo de sua propriedade terras que ocupam cerca de quatro milhões de hectares em UCs e outros onze milhões de hectares em Terras Indígenas, área total que corresponde aos territórios de Cuba e da Holanda somados.
Um estudo divulgado em julho por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) após análise em 49 mil propriedades rurais no Mato Grosso e no Pará revelou que o CAR não conseguiu cumprir seus dois maiores objetivos, já que após sua adoção o desmatamento ilegal nas propriedades privadas não diminuiu e apenas 6% dos proprietários estão realizando de forma efetiva alguma ação de restauração da floresta derrubada. A realização do cadastro, feita na sequência da aprovação do novo Código Florestal e apresentada como “o maior programa de recuperação de florestas do mundo”, reduziu áreas protegidas e anistiou desmatamentos realizados até 2008. A esperada contrapartida dos proprietários, no entanto, nunca veio e parece agora sepultada no governo Temer.
Resistência
Para Carlos Minc, as concessões do atual governo aos ruralistas já eram esperadas: “Sem apoio popular e sem legitimidade, Temer depende do Congresso que é dominado pelas bancadas do boi, da bala, da bíblia e ruralista. E faz sucessivas cedências a estas pautas conservadoras. Projetos aprovados ou avançados para aprovação restringem e diminuem Parques Nacionais e Terras Indígenas, desmontam o licenciamento ambiental. Esta sinalização foi uma senha para o aumento de massacres contra índios, trabalhadores sem-terra e lideranças ecologistas”, diz.
O sucateamento dos órgãos de fiscalização, segundo o deputado, também incentivam o desmatamento; “O Ibama, sem recursos e de mãos atadas, não consegue combater a ofensiva de crimes ambientais, apesar da dedicação e bravura de seus quadros. O desmatamento aumenta, não só na Amazônia mas também no Cerrado e na Mata Atlântica. O ministro Sarney Filho em alguns pontos tenta minimizar o prejuízo, mas não tem cacife face às bancadas ruralistas, aos interesses dos pecuaristas e mineradoras."
Os críticos ao governo Temer pregam a resistência na luta ambiental: “O governo brasileiro está sendo o maior promotor de violações dos direitos humanos, comparado apenas aos momentos ditatoriais da história do Brasil. Está violando o direito de cidadãs e cidadãos brasileiros a um território saudável. Mas, existe uma resposta da sociedade civil, os movimentos estão se coordenando para fazer um confronto maior contra essas desumanidades que o governo brasileiro está fazendo ao abrir completamente o país e a Amazônia ao interesse internacional, o que é um atestado à destruição dos ambientes e um desrespeito total à Constituição, às Unidades de Conservação e às Terras Indígenas”, diz Iara Pietricovski, para quem, “com a agenda de violações de direitos que está promovendo, o Brasil não pode nem usar mais a linguagem soft das Nações Unidas”.
Minc também afirma que a organização da sociedade civil é fundamental: “O Brasil segue sendo um símbolo, uma esperança e um imenso potencial. Há que resistir contra esta ofensiva conservadora e predatória para impedir que voltemos a ser o país da motosserra, dos reis do gado, das emissões por desmatamento e dos massacres de índios e trabalhadores sem-terra”, diz.
Fonte: Portal Vermelho A Esquerda Bem Informada
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