sábado, 19 de maio de 2012

Meio ambiente: Vozes do apocalipse

José Carlos Ruy ''O clique das pás - ah, como me alegra Esta é minha multidão, que quando trabalha A terra se reconcilia consigo própria E impõe limites ao mar E o prende em uma zona rígida'' (Goethe, Fausto, 2ª Parte, V Ato) Fausto, o personagem síntese da época revolucionária da burguesia, refletiu, nos versos acima, o pensamento capitalista de uma época onde o progresso era visto como inexorável. Era uma visão otimista: o trabalho, sob o comando da burguesia, reconcilia a Terra consigo própria, altera o meio ambiente e pode impor barreiras ao próprio mar. Na seqüência da cena, essa promessa foi aprofundada e Fausto sonha com multidões de operários para abrir um fosso, drenar um pântano e limpar o ar empestado, abrindo ''espaço a milhões de homens que ali viverão em segurança, ativos e livres''. Seu interlocutor, Mefistóteles - o demônio com quem fez um trato - assiste a tudo com ironia e ceticismo. ''Com teus diques e represas é só para nós que trabalhas, e a Netuno, demônio dos mares, preparas um grande festim''. E, a meia voz, comentava os planos de Fausto: ''não é um fosso, mas uma fossa''. Este texto foi escrito na época áurea do desenvolvimento do capitalismo, celebrada por Goethe no segundo Fausto (1831). Ele conseguiu resumir, num dos atos finais de sua grande obra, a contradição que iria se desenvolver nos dois séculos seguintes e que chegaria a nossos dias como uma espécie de ideologia com dupla feição. De um lado, o pensamento ambientalista que se apresenta como uma explicação do mundo e um programa para a sobrevivência do homem. De outro, a razão técnica, que serve à ação empresarial e garante que a ciência sempre encontrará soluções para os problemas que ela provoca. Se o produtivismo otimista implícito naquela idéia de que a natureza existe para servir ao homem, e pode ser modificada de acordo com suas necessidades, ainda persiste em nosso tempo, a face mais visível do pensamento ambientalista que se difundiu pelo mundo nas três décadas finais do século 20 está mais de acordo com o ceticismo de Mefistóteles. As questões ambientais ganharam o Brasil e o mundo, incorporadas à pauta de governos, empresas, organizações não-governamentais, academias e meios de comunicação, num discurso sobre a necessidade de proteção dos recursos naturais, ameaçados de esgotamento num momento não muito distante da evolução da humanidade, e ameaçando a própria integridade do planeta. As teses ambientalistas passaram a constituir o corpo doutrinário de uma verdadeira ideologia que vê o mundo à beira do colapso e aponta o dedo acusador para a ciência, para um ''homem'' abstrato (homem que muitos consideram como o ''vírus'' da Terra, seguindo Thomas Lovejoy, o biólogo norte-americano que foi consultor do Banco Mundial e do presidente dos Estados Unidos entre 1989 e 1992, George Bush, pai). É uma ideologia que enfatiza a ampliação da consciência ecológica como remédio para estes males. Um ponto de vista alternativo é o de que a ciência sempre encontrará uma solução ''técnica'' para os problemas humanos, inclusive os ambientais. A ciência ajuda a dominar a natureza, alegam - e, no limite, ''pode tudo''. Esse debate está permeado pelo confronto entre ciência e irracionalismo, onde se ressalta a compreensão romantizada dos ecologistas sobre a natureza, como diz o filósofo francês Jean Baudrillard, para quem a maioria dos ambientalistas tem ''uma visão simplista da natureza'', adocicada e pueril. Eles cometem ''um erro fundamental: tratam a natureza como se fosse um sujeito com quem poderiam tratar de igual para igual. Mas ela não é sujeito, é objeto”, diz ele. E “não há contrato natural possível, pois um contrato só se faz entre dois sujeitos'', disse em entrevista a O Estado de S. Paulo, em 20 de junho de 1992, durante a realização da conferência Rio 92. Equilíbrio dinâmico Embora a caracterização de Baudrillard contenha um eco da visão cientificista que vê a natureza como objeto - na verdade o mais correto seria dizer que há um metabolismo entre homem e natureza, seguindo a tradição iniciada por Karl Marx - ela tem um grão de verdade quando denuncia o caráter ideológico das concepções dominantes sobre o meio ambiente. Ao contrário do que supõe o pensamento ambientalista, a Terra e a natureza não são estáveis, e as mudanças são provocadas pela ação dos seres vivos - entre eles o homem - e dos movimentos da própria Terra, como o escapamento de gases de seu interior através de vulcões, ou o movimento das águas e das núvens, que alteram as condições ambientais, ou ainda as alterações astronômicas decorrentes de seu movimento em torno do Sol e da rotação sobre seu próprio eixo. O astrônomo Ronaldo R. de Freitas Mourão registra, no livro Ecologia cósmica (1992), pesquisas recentes segundo as quais o clima atual do planeta tem apenas alguns milhares de anos, e suas variações periódicas são provocadas, diz, pela precessão, obliqüidade e excentricidade, que ''constituem os parâmetros característicos da órbita terrestre no sistema solar''. A combinação desses movimentos com a ação dos organismos vivos criou a natureza como a conhecemos hoje, contrariando a imagem da natureza como um santuário intocável, fixo e imutável desde seusurgimento, e hoje ameaçado pela ação desse “homem” que frequenta o pensamento de amplos setores do pensamento verde. O reflexo das alterações astronômicas ocorridas na Terra foram as fortes mudanças no clima que marcam as história do planeta; são elas que explicam, por exemplo, que há apenas 60.000 anos o Canadá e quase metade dos Estados Unidos estavam cobertos de gelo, lembra o biólogo Richard Lewontin. Lewontin é um dos muitos cientistas recusam a tese ambientalista da natureza como um santuário fixo e imutável. Para ele, esse pensamento está em ''completa contradição em relação ao que conhecemos acerca dos organismos e meio-ambiente'', diz no livro Biologia como ideologia: a doutrina do DNA (1992, publicado no Brasil em 2000). Quando se olha, diz, ''diretamente para as atuais relações entre organismos e o mundo em redor deles, encontramos um conjunto de relações muito mais rico'', cujas conseqüências sociais e políticas são bem diferentes do que supõe o movimento ambientalista. Para ele ''ambiente'' só existe em relação aos organismos presentes nele. Os organismos criam os ambientes, diz; assim, o que se chama de equilíbrio ambiental é um processo em permanente movimento, dinâmico. Não há um mundo exterior constante e fixo ''que os seres humanos sozinhos estão modificando ou destruindo. Nós certamente estamos mudando o mundo, assim como todos os organismos o fazem'', conclui. Nossa própria atmosfera, esta esfera sacrossanta, não existia antes dos organismos vivos. A maior parte do oxigênio, diz Lewontin, ''estava aglutinada em substâncias químicas'' e a ação das algas e bactérias durante os primeiros milhões de anos de vida na Terra removeu o dióxido de carbono livre da atmosfera, depositando-o no calcário e nos despojos de corais, por exemplo. O oxigênio ''foi colocado na atmosfera pela atividade das plantas e então os animais evoluíram dentro de um mundo feito para eles por conta dos primeiros organismos''. Lewontin lembra também as grandes extinções ocorridas na Terra; praticamente 99,99% de todas as espécies que já existiram desapareceram muito antes do surgimento do homem. Uma destas catástrofes ocorreu no permiano, há 235 milhões de anos, acabando com quase 90% das espécies. Outra, notável, foi a eliminação dos dinossauros, acelerada pela queda de um asteróide na península mexicana de Yucatan, há 65 milhões de anos. Ela provocou um impacto que ajuda a relativizar o temor de que o homem vai destruir a Terra: a violência daquela queda foi 11 mil vezes maior do que a explosão simultânea de todas as armas nucleares hoje estocadas no planeta. Mesmo a Amazônia, esse dogma do pensamento ambientalista contemporâneo, tem uma história dinâmica que aos poucos vai sendo revelada. Em sua origem, há uns 70 milhões de anos, o rio Amazonas corria rumo ao oeste, para o oceano Pacífico; com o surgimento da cordilheira dos Andes, 15 milhões de anos atrás, o fluxo das águas foi invertido e passaram a correr para o leste, formando seu curso atual que desemboca no oceano Atlântico. Menos conhecida é a história geológica do Nordeste brasileiro, outro exemplo desse ''equilíbrio dinâmico''; a região foi, no passado, mais fria e úmida do que é hoje, como demonstrou uma pesquisa da Universidade Federal do Ceará, feita na década de 1980, a partir a análise de água depositada no subsolo entre 40 mil e oito mil atrás, na região de Serra Grande, entre o Ceará e o Piauí (municípios de Picos e Jaicos); o estudo demonstrou que, há uns 12 mil anos, a temperatura média anual da região era cinco graus mais fria do que hoje, e a quantidade de chuva entre 20 a 35 vezes maior. (A versão inicial deste texto foi publicada em Retrato do Brasil, segunda edição, 2006 - ele será publicado aqui, revisado, em seis partes). Fonte:INMA - Instituto Nacional do Meio Ambiente

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